domingo, 4 de outubro de 2020

Histórias vividas com o Fluminense: 5 - O torcedor indigesto

Bem que tentei dar nova chance ao Odair, mas não deu.

Contra um Botafogo sem inspiração, com apenas uma vitória no campeonato e seriamente ameaçado de rebaixamento pensei que Odair deixasse de lado o seu habitual medo de perder.

Ledo engano. Bastou o time abrir o placar para os torcedores voltarem a se desesperar com a volta do futebol covarde, característica intrínseca de nosso treinador. 

Considerar Odair como treinador já é uma aberração cerebral, pura quimera. Seu time não tem equilíbrio, sequer uma jogada ensaiada, um verdadeiro bando em campo e sempre com os mesmos jogadores, sem importar se eles jogam bem ou mal.

E como não me sinto à vontade para falar mal do Fluminense, vou aproveitar para evitar riscos de enfartos e passar a assistir apenas as resenhas pós jogos e utilizar esse espaço para continuar contando as aventuras vividas com o Fluminense, principalmente nos estádios Manoel Schwartz, Mario Filho e Newton Santos.

Na verdade, não sei se conseguirei ficar afastado de vez do Tricolor, de qualquer modo vou tentar.

A história a seguir lembra o artilheiro uruguaio Ambrois, provavelmente desconhecido de muitos tricolores por sua efêmera passagem pelas Laranjeiras.


      Histórias vividas com o Fluminense: 5 - O torcedor indigesto


Quem ainda não teve o dissabor de ser azucrinado por um torcedor enjoado durante uma partida de futebol?
 

Na época do futebol civilizado eles existiam e de vez em quando apareciam nos estádios para perturbar a vida dos adversários.

 

Hoje esse tipo de sujeito praticamente desapareceu de cena porque, do jeito que anda a violência, não resistiria a dez minutos sem levar uma boa surra de algum truculento sempre à espera de uma oportunidade para bater nos fracos.

 

Em meados dos anos 50 não existia a presença de trogloditas nos estádios, de modo que não restava opção a não ser aguentar friamente as provocações irritantes.

 

E foi assim que aconteceu comigo e grande parte da torcida num jogo entre o Fluminense e o Olaria.

 

De novo o Olaria!

 

O mesmo clube que no campeonato anterior deixou a vitória escapar no último segundo da partida, mercê de uma cabeçada certeira de Marinho, naquele jogo tumultuado relatado na postagem anterior.

 

O Fluminense tinha um timaço com Castilho, Píndaro e Pinheiro, seu trio final famoso, como costumavam dizer os locutores da época.

 

Na asa média esquerda__ não estranhem a nomenclatura, era o que vigia na época__ Bigode, que apesar de execrado pela mídia recalcada depois da perda da Copa do Mundo de 1950, ostentava boa forma e era um de nossos destaques.

 

Os desfalques de Didi, Waldo e Escurinho eram preocupantes, principalmente porque o adversário, além de ser useiro e vezeiro em aprontar nas Laranjeiras, abusava da violência, onde Olavo, o mesmo botinudo de jornadas passadas, se destacava sobre os demais.

 

Marinho, o outro centro avante raçudo, já estava praticamente recuperado de grave lesão no joelho, mas não tinha a mínima possibilidade de jogar contra a pesada defesa do Olaria.

 

A preocupação quanto a um desastre era grande, porque Zezé Moreira não tinha outra opção a não ser escalar uma linha atacante muito leve com Milton, Ambrois, Telê, Robson e Quincas.

 

Convém esclarecer aos mais jovens que praticamente todos os times jogavam no sistema WM com dois zagueiros centrais, três médios volantes habilidosos para municiar o ataque e cinco atacantes.

 

Com a evolução tática do futebol, esse esquema foi abandonado e substituído por miríades de combinações, algumas sem o mínimo sentido prático e que acabaram por criar uma série infindável de técnicos incapazes, retranqueiros e medrosos, sem noção alguma de como se deve preparar um time de futebol.

 

Apesar de não estar passando por um bom momento, a responsabilidade maior para os gols recaiu sobre Ambrois, atacante uruguaio, vindo do Nacional.

 

Ambrois teve passagem meteórica pelas Laranjeiras, não chegando a completar dois anos com a camisa tricolor. Ainda assim marcou sua presença.

 

Apesar de grande destaque jogando pelo Nacional e pela seleção de seu país, com participação efetiva na Copa do Mundo, marcando gols contra a Inglaterra e a vice-campeã Hungria, sua adaptação no Tricolor não foi imediata e os torcedores já começavam a pegar no seu pé com a sequência de participações sem brilho.

 

O Olaria sempre foi a pedra no sapato quando jogava nas Laranjeiras, porque quase sempre conseguia sucesso com suas retrancas eficientes, capitaneadas por Olavo, o mesmo volante truculento citado na passagem anterior e que quase levou o seu clube à vitória. 


Seu destempero chegou ao ápice alguns anos depois num jogo na rua Bariri, vencido de virada pelo Tricolor por 2 a 1.  


Ao ser expulso de campo, após uma ríspida disputa de bola com Telê, Olavo não se conformou, deu um tapa na cara do árbitro e não satisfeito partiu para cima correndo alguns metros atrás dele até que foi seguro pela turma do “deixa disso”.

 

A aventura rendeu-lhe uma suspensão de mais de um ano, o que acabou encerrando sua carreira.  

 

Apesar de não me lembrar de uma só partida realizada no alçapão da Rua Bariri que não tenha sido vencida pelo Fluminense, em nossos domínios os jogos quase sempre eram difíceis e vez por outra amargávamos alguns resultados ruins. 

 

Difícil de entender o fenômeno: engrossavam quase sempre nas partidas jogadas nas Laranjeiras e perdiam todas quando as disputas eram em seus domínios.

 

Os três importantes desfalques diminuíram a diferença abissal que existiria entre as equipes, caso a nossa estivesse completa.

 

Até pouco antes de escrever essa história só me lembrava da vitória fácil e dos dois gols do Ambrois, além da azucrinação por parte do torcedor adversário.

 

Tive que recorrer aos jornais da época para relembrar as escalações, a marcha da contagem e toda a situação vivida naquele domingo, véspera do dia da proclamação da República.

 

A social do estádio estava cheia, lotada como sempre.

 

Nas arquibancadas superiores um bom público na parte central em frente às sociais e menos gente nas laterais.

 

Não existia divisão de área para as torcidas nos jogos com os times de menor expressão, porque poucos se dispunham a perder uma tarde de domingo para assistir derrotas previsíveis.

 

Naquele dia, porém, aconteceria algo inusitado que, embora no princípio não tivesse sido nada agradável, teve um final compensador.

 

E justamente pela presença do torcedor chato, o próprio cricri.

 

Era um jovem magrinho, tipo do fraco abusado, vestindo uma camiseta azul e usando um chapéu. Parecia de palha, mas não lembro bem.


E com tanto lugar vazio, resolveu ficar bem no canto da arquibancada superior à esquerda do placar, lugar ideal para que seus gritos pudessem ser ouvidos claramente pela parte da social mais próxima, como assinalado na imagem a seguir. 

 


Talvez a causa de sua animação tenha sido a lembrança da boa atuação de seu clube no jogo do campeonato anterior, aquele jogo no qual Marinho deixou o campo como herói.

 

Antes mesmo do início, ele já praguejava. “Vocês vão sair de cabeça inchada”, “vão perder esse jogo”.

 

O pessoal não se importou e até achou graça naquela figurinha folgada, isolada, sem ninguém por perto.

 

O lugar onde resolveu sentar-se tinha sido escolhido a dedo, porque aquela posição, sem dúvida alguma, seria a melhor para perturbar as nossas vidas.

 

Passou grande parte do jogo de pé, debruçado sobre o muro que separa as arquibancadas da parte social, berrando e fazendo sinais para nós.

 

Quase não prestava atenção ao que ocorria em campo. Seu prazer era caçoar e olhar a nossa cara.

 

Em posição privilegiada olhava-nos de cima sem que tivéssemos chance alguma de revidar.

 

Naquela época as sociais do estádio dispunham de cadeiras de madeira presas umas nas outras, de modo que seria praticamente impossível alguém tentar se aproximar para espantar o intruso. 

 

E como sempre acontecia em nosso campo o Olaria fazia jogo duro e enquanto sua retranca dava certo éramos obrigados a ouvir todo o tipo de gozação.

 

Impossível precisar quantas vezes ouvimos aquela frase perturbadora: “Vocês vão perder esse jogo, vão sair de cabeça inchada”.

 

Nem o primeiro gol marcado por Ambrois arrefeceu seus ânimos e os gritos de que iríamos sair de cabeça inchada não paravam de ecoar em nossos ouvidos, porque apesar de magrinho ele tinha um grito agudo estridente. Parecia uma gralha.

 

E a situação piorou quando o Olaria empatou com uma bola vadia quase no fim do primeiro tempo.

 

Empolgado com o empate, seus gritos aumentaram de volume e tivemos que aguentar durante os quinze minutos de intervalo, que pareceram uma eternidade, sua gritaria ensurdecedora. 


"O Castilho vai engolir um frango", "Hoje a leiteria vai fechar", referindo-se ao apelido de leiteiro, colocado em nosso goleiro pelos frustrados adversários, devido à frequência com que várias bolas batiam em suas traves.


Os recalcados preferiam associar à pura sorte o fato de suas traves salvarem vários gols, esquecendo-se ou não querendo enxergar que o grande senso de colocação de nosso goleiro era a causa das inúmeras chances perdidas.


A certa altura, o cricri colocou uma pena no chapéu numa alusão à mascote do Olaria e nos infernizava com arremedos de canções que ele provavelmente julgava serem de origem indígena e tentava imitar o som de hipotéticas línguas dos índios.


Ninguém mais tinha ânimo para reagir, nem xingamentos nem vaias. A preocupação maior era o empate e o receio que se repetisse o desastre ocorrido no campeonato passado.


E nem o segundo gol tricolor, conquistado logo no início do segundo tempo, arrefeceu os ânimos da figurinha, que continuou gritando que o Castilho ainda iria tomar um frango.

 

E os berros continuaram até o terceiro gol tricolor, quando finalmente ele se calou.

 

Foi a hora do revide às insuportáveis gozações.

 

“Cadê o empate do timinho”? E outros gritos e xingamentos.

 

O panorama tinha mudado. O cricri, agora sentado, apenas esboçava um sorriso amarelo contra os xingamentos vindos dos mais exaltados da social tricolor.

 

Cheguei a ficar com pena dele, sozinho, cabisbaixo e sofrendo todo o tipo de represália pela ousadia de ter desafiado a nossa torcida.

 

Gol do Fluminense: 4 x1. Alegria geral.  


Foi quando meu pai olhou para a arquibancada e perguntou: "cadê ele"? Ele tinha sumido.


Enquanto comemorávamos o quarto gol, ele saiu de fininho e desapareceu.




 

Deixamos as Laranjeiras satisfeitos com a boa vitória, mas com os ouvidos doendo de tanta baboseira gritada pelo falso índio Bariri.

 

Na semana seguinte, os jornais exaltavam a atuação de Ambrois, autor de dois gols, um deles verdadeiro gol de placa, numa arrancada onde driblou quase toda a defesa bariri e o próprio goleiro Anibal. 

 

Teve participação efetiva nas jogadas do terceiro gol ao cabecear na trave e propiciar que Robson aproveitasse o rebote e ampliasse o placar.

 

 

AMBROIS

 


Javier Ambrois, atacante da Seleção Uruguaia, chegou ao Fluminense numa troca com o goleiro Veludo, eterno reserva de Castilho.

 

O Nacional, clube uruguaio que detinha o seu passe, precisava de um goleiro de alto nível e julgava ser fácil convencer Veludo a se transferir, porque com Castilho no time suas chances de jogar seriam mínimas.

 

As tentativas já vinham desde algum tempo, mas naquela época   os presidentes do Fluminense não se deixavam levar por qualquer proposta de dez “merréis” de mel coado, como os de hoje em dia, que pouco se importam com os resultados do clube em campo.

 

Nossas "pratas da casa" só eram liberadas em condições excepcionalmente vantajosas para o clube.

 

No entanto, a saída inesperada de Carlyle e a grave contusão de Marinho deixaram o elenco sem centro avante experiente e os uruguaios aproveitaram a oportunidade para sugerir uma troca pelo atacante incompatibilizado com a diretoria do clube, que acabou sendo aceita.

 

Muitos torcedores provavelmente nunca ouviram falar de Ambrois pela brevidade de sua permanência, mas a verdade que a partir daquele jogo ele desencantou e seu faro de gol voltou com toda a força.

 

Passou a ser o artilheiro que o time precisava e praticamente não deu vez ao jovem Waldo, que começava a despontar como grande goleador.

 

Suas atuações despertaram o interesse do Boca Juniors que depois de insistentes assédios acabou por levá-lo para Buenos Aires, onde brilhou intensamente antes de retornar ao Uruguai.

 

Pelo lado tricolor a saída de Ambrois no ano seguinte possibilitou a titularidade absoluta a Waldo, atacante que acabaria se consagrando como o maior artilheiro do Fluminense de todos os tempos.


Continua com: Tremenda odisseia para assistir a apenas a um gol.

  

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