segunda-feira, 23 de março de 2020

Histórias vividas com o Fluminense Football Club 1. A sábia escolha pelo Verdadeiro Tricolor.


Há muito tinha a intenção de contar o que era o Fluminense que conheci desde os tempos de criança, o privilégio de ter podido vivenciar a época áurea do clube com administrações corretas e inteligentes, que tornaram o Fluminense o maior símbolo desportivo de nossa cidade.

Creio ter chegado a hora de compartilhar esses acontecimentos com os demais torcedores, principalmente aqueles mais jovens que não puderam sentir de fato a importância que o nosso Tricolor já desfrutou.

O dia a dia do clube, os contatos com os craques, a visita do Castilho, o bom papo com o Ademir Menezes e acontecimentos interessantes durante alguns jogos, as alegrias e decepções marcantes que fazem parte da vida de todo o torcedor estarão presentes e sempre que possível em ordem cronológica dos acontecimentos.

Espero que gostem.

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1. A sábia escolha pelo Verdadeiro Tricolor

Não pensem que a decisão tenha sido fácil.

Nascido numa família de rubro-negros e sendo o primeiro neto do sexo masculino a pressão para que me integrasse à maioria era constante.

Felizmente em meio àquele mar de parentes com gostos diferentes do meu, uma pessoa lúcida: minha mãe, que não sei por que cargas d’água resolveu torcer pelo América.

Chego a crer que seu subconsciente era matreiro e sabia que esse negócio de fazer parte de maiorias sem criatividade não seria uma boa para ela.

América, isso mesmo. O América Football Club, o “Mequinha” para os íntimos, o segundo clube de todo o carioca, pelo menos até meados da década de setenta.

Meus tios me contavam que não sabiam de onde veio a ideia de torcer para o América, mas o fato é que em muitos domingos passavam as tardes ouvindo incessantemente os gritos de “dá-lhe Amado”, o ídolo dela da época.

E, segundo eles, quando a vitória era sobre o Flamengo aí mesmo é que ninguém aguentava. 
                                      
Eu mesmo tive o desprazer de vê-lo campeão sobre o Fluminense.

Foi num domingo de dezembro de 1960 e por pura coincidência os dois únicos postulantes ao título se enfrentaram na rodada final.

O favoritismo era todo tricolor: tínhamos o melhor time com Castilho, Pinheiro, Clovis, Altair, Telê, Valdo, Escurinho e a vantagem do empate.

João Carlos, o cérebro do meio campo adversário era cria da base tricolor. Passou a maior parte de sua carreira no América.

Jogava o fino da bola, mas quando o Flu o pegava de volta não conseguia repetir as boas atuações. E aí novo empréstimo para o América, onde ele se dava muito bem. Essas idas e vindas foram constantes em sua carreira.

Partimos para o estádio certos da vitória, eu e meu fiel escudeiro nos jogos do Fluminense, o amigo Mauro.

Em meio aos cachorros quentes da Geneal, antiga atração gourmet do Maraca, vimos o Pinheiro converter um pênalti ainda no primeiro tempo.

Confiança total, agora teríamos que levar dois gols para perder o título. Nada poderia dar errado: time melhor, ganhando o jogo e com defesa sólida, quase impossível perder o campeonato.

A coisa, porém, desandou e o América conseguiu a virada com um gol de Jorge, um zagueiro direito dos bons. 


Jorge era um dos precursores dos laterais de hoje. Apoiava bastante o ataque, coisa rara na época porque os treinadores faziam seus times forçar as jogadas pelas laterais com dois pontas ofensivos.     

Abel tentou essa tática no carioca de 2017, quando as atuações do time encantaram a todos os tricolores e a maioria dos cronistas.

O esquema funcionou até que a pubalgia crônica do Wellington Silva e a burrice do fraco presidente Abad de vender o Richarlison a preço irrisório mataram a criatividade do nosso ataque.

Mesmo assim, o título só não veio devido a mão grande contumaz da arbitragem escolhida a dedo pela espúria federação estadual, useira e vezeira em favorecer o “clube das massas”.

Esse choro faz parte do contexto porque nos Fla-Flu’s com raríssimas exceções, toda jogada duvidosa é decidida a favor do Fla.

Mas deixa isso para lá e voltemos a 1960.

Os mais jovens não devem estar entendendo nada porque o   América atual não passa de um arremedo do que era na época.

Jogava com os grandes do Rio e São Paulo de igual para igual, partia para cima, nada de retranca e tinha presença cativa nos Torneios Rio-São Paulo e nos campeonatos nacionais.

Outro exemplo marcante de sua grandeza ocorreu na melhor de três decisiva do estadual de 1954, em particular o segundo jogo da série, quando venceu Flamengo por 5 a 1, com uma atuação magnífica de seu principal jogador, o meia paraguaio Alarcon, que dominou o meio de campo por completo.

Na terceira partida o Flamengo deu o troco e ganhou de 4 a 1. Uma vitória meio marota porque aos dez minutos de jogo, Tomires, o zagueiro do Flamengo conhecido por ser um verdadeiro carniceiro, partiu para cima de Alarcon e simplesmente quebrou-lhe a perna, o que fez com que o América jogasse durante oitenta minutos com apenas dez jogadores, porque as substituições ainda não faziam parte da regra.

O juiz fez vista grossa e Tomires permaneceu em campo, o que prova que desde há muito as mutretas já estavam presentes em nossa cidade.    

O Ameriquinha continuou brilhando até ser banido da Primeira Divisão do Campeonato Brasileiro com uma simples canetada, fruto da amoralidade que já grassava na antiga CBD, a CBF de hoje, que ignorou solenemente a sua terceira colocação, obtida no campeonato do ano anterior. 

Mas, não vou entrar no mérito dessa história escabrosa e seus desdobramentos. Deixo isso a cargo de americanos eméritos, como José Trajano e Alex Escobar. 

Minha mãe cresceu e teve o bom senso de casar com um tricolor, não muito fanático, afinal era natural da Holanda, país em que naquele tempo o futebol não era dos esportes mais vencedores.

Seu irmão, André, era mais empolgado com o Fluminense e sempre forçava a barra para irmos aos jogos, já que não podia contar com o restante da família que sofria da mesma falta de gosto de meus parentes por parte de mãe, todos rubro-negros.

Meu pai, entretanto, continuava cético quanto a se deslocar para o Maracanã. Para ele nada se comparava a assistir os jogos nas Laranjeiras e só ia ao Maraca em condições especiais.

Aproveitando-se desse comodismo, o irmão mais novo de minha mãe, meu tio Eurípedes, resolveu tentar de todos os modos me converter ao clã rubro-negro.

Meu outro tio e padrinho Sallustio vez por outra também dava seus pitacos tentando me convencer, mas já casado e não mais morando tão perto não tinha tempo suficiente para lograr êxito na missão.

Eurípedes foi um capítulo à parte em minha infância. Ainda solteiro e consequentemente sem filhos, passou a fazer dos sobrinhos suas companhias constantes.

Tratava-nos como iguais, tanto assim que nunca o tratamos como tio, apenas como Ripeapelido que tinha desde antes de nascermos, eu acho.

Ripe nos levava para passear; uma das vezes passamos duas semanas de nossas férias em Paquetá, verdadeiro paraíso na época.

Minha prima não ligava para futebol e talvez para não contrariar a maioria apregoava ser rubro-negra, o que direcionou as baterias em minha direção, afinal eu era o estranho no ninho.

Quase todo fim de semana Ripe escolhia a dedo um jogo para assistirmos. Quando o Flamengo jogava em algum campo dos clubes dos subúrbios, o destino quase sempre o Estádio das Laranjeiras e quando era a vez do Flu nos longínquos estádios assistíamos aos jogos do Fla.

O curioso é que ele vibrava com os gols tricolores, espertamente esperando que eu fizesse o mesmo quando dos jogos do Flamengo.  

E confesso que torci bastante pelo Flamengo por várias vezes, pois não dava para ver aquele amigo, muito mais que um tio, triste com a derrota de seu clube de coração.

Claro que nos Fla-Flu’s cada um torcia para o seu e quase sempre o Fluminense jogava melhor e eu me dava bem.

Se não era fanático, meu pai era um cara esperto e ao ver as artimanhas do Ripe, deu um golpe de mestre.

Aproveitando o fato de que agora morávamos no bairro das Laranjeiras colocou-me como sócio infantil do Fluminense. 



Glória total. Ao pisar pela primeira vez na sede emblemática, no mítico estádio de tantas conquistas, incorporei de vez a sensação incomparável de ser tricolor.

Já tinha assistido a vários jogos naquele campo, mas sempre das arquibancadas e nada se comparava à sensação de pisar naquele gramado pela primeira vez e sentar nas cadeiras das sociais.

Com a manobra de meu pai, Ripe desistiu definitivamente de me convencer, embora continuasse a ir aos jogos comigo, tanto do Fluzão como de seu Flamengo.

E por incrível que pareça continuava a gritar nos gols tricolores, talvez por lealdade a mim, seu companheiro constante nos estádios.

Superei o pesar pela “ingratidão” cometida com ele pela resistência em não entrar para o clã rubro-negro porque tenho certeza de que sua decepção foi completamente compensada quando mais tarde seu filho, meu primo Marcelo, mostrou-se um flamenguista de quatro costados.

Passei a maior parte da infância e da juventude dentro do Fluminense.  Quando criança curtia a piscina e as peladas na pista de atletismo.

Não era permitido aos sócios jogar no campo para não estragar o gramado. Mas o clube dava uma "colher de chá", liberando a pista de atletismo para a realização de peladas, fato impensável hoje em dia. 


Nas ocasiões em que não havia treinamento para os atletas,
as pistas ficavam livres para a molecada jogar suas peladas 
                
Às vezes, os "mais velhos" usavam a força para jogar primeiro. Só não o faziam quando algumas meninas, em especial as do time de natação, iam assistir aos jogos das arquibancadas sociais e era ótimo, pois aí a maioria dos "mais velhos" preferiam paquerar e deixavam a pista livre para a molecada.

Mais tarde, éramos nós que paquerávamos enquanto os novos moleques se esbaldavam em homéricos rachas.

Com o passar do tempo as peladas saíram do cardápio e a atenção maior passou para as noites dançantes no Bar da Piscina.

Eu não dançava nada, um verdadeiro pé de chumbo, mas não perdia a chance de me juntar à galera dos que não dançavam para tomar umas cervejinhas, jogar conversa fora e apreciar as belas garotas do time de natação.  Que gatas!

Algumas paqueras até deram certo, mas duraram pouco.

Jogos nas Laranjeiras? Não perdia um. Naquela época o Tricolor era o terror, daí a bronca dos adversários até os dias de hoje.

A tradição dos domingos de festas, iniciada no início do século XX, perdurava até os dias em que comecei a frequentar o estádio, embora os chapéus, ternos e gravatas não mais estivessem presentes.

O estádio era de um charme só e muitas famílias se reuniam no clube muito antes do início das partidas.

Era programa imperdível até para os que não eram sócios porque havia lugares disponíveis para mais de vinte mil pessoas fácil, fácil.

Jogadas brilhantes, vitórias épicas e títulos incontáveis eram a tônica do estádio.


A frequência nos idos de 1920

Jogo entre as seleções do Rio de Janeiro e de São Paulo em 1926

Pena que hoje não é mais assim. O estádio foi mutilado por políticos despreparados para não dizer outra coisa, arrogância e desconhecimento dos dirigentes sobre o esporte pilar do clube, departamento médico que deixa a desejar durante anos a fio, valorização exagerada de revelações comuns, contratações esdrúxulas, enfim um monte de coisas que nos tornam nostálgicos quando nos recordamos daqueles anos memoráveis. 

Mas, se meu pai teve que usar sua esperteza para me tornar tricolor, não tive dificuldade alguma para fazer seus netos trilharem o caminho do bom senso e da alegria.

Tarefa facilitada pelo fato de meus filhos não terem tido tios, o que garantia não haver ninguém para tentar desvirtuá-los, como o saudoso Ripe.

Foi muito fácil, bastou escolher com cuidado o primeiro jogo para levá-los ao Maracanã.

E como o Vasco era freguês contumaz, levei os dois mais velhos para a decisão do primeiro turno do estadual de 1980. Empate no tempo normal e vitória na decisão por penalidades.

Foi um risco calculado, apesar do Vasco ter em seu elenco Roberto Dinamite e Paulo Cesar Caju.

Mas, graças a Deus, no fim deu a lógica. O Fluminense venceu o turno e mais tarde foi campeão estadual sobre o mesmo Vasco, com gol de Edinho cobrando falta.  

Embora tenha dado tudo certo, confesso ter ficado um pouco preocupado no intervalo da partida.

Isso porque, perdendo o jogo por um a zero, um garotinho todo paramentado de vascaíno, calção, camisa, meias e uma bandeira maior que ele, pulava de alegria e dava vivas ao bacalhau.

Pedro Henrique, meu filho mais novo, via a cena e falava para mim: “pai, se eu torcesse para o Vasco poderia estar me divertindo igual aquele menino”.

Tensão total. Nada me restava dizer a não ser o óbvio, que o jogo estava no intervalo e que no final o Fluminense iria vencer.

Sufoco até o apito final, felizmente a escrita foi confirmada.

Vale ressaltar que mesmo sem a badalação dos dias atuais, a base tricolor era muito boa e vencedora. Não existia esse papo de hoje de “time de garotos”.

Os caras eram bons, iam para cima e ganhavam. Simples assim. E melhor, os técnicos não eram covardes como a maioria dos atuais e não hesitavam em colocá-los para jogar.

A equipe de 1980 continua sendo o maior exemplo disso, com nove titulares campeões formados na base: Paulo Goulart, Edevaldo, Tadeu, Delei, Edinho, Rubens Galaxe, Robertinho, Mario e Zezé. Contratações, apenas Gilberto e Claudio Adão.

Durante todo o campeonato, a equipe sofreu poucas alterações. A mais expressiva foi a presença de Mario Jorge em vários jogos e também na final.


Jogo do batismo de fogo de Pedro Henrique e Marisa.
De pé: Paulo Goulart, Edevaldo, Tadeu, Delei, Edinho e Rubens
Galaxe. Agachados: Robertinho, Gilberto, Mario, Claudio Adão e Zezé.


Se a primeira experiência de assistir a uma partida com os mais velhos foi tensa, com a caçula resolvi não correr riscos.

Desde pequena, arrastava-a para as Laranjeiras ou Maracanã para ver somente jogos aparentemente fáceis.

Talvez tirando um ou dois empates, acho que só presenciou vitórias. O único risco foi o jogo do gol de barriga.

Na verdade, não tinha como não arriscar. Já tínhamos dado duas sapatadas no rubro-negro no mesmo campeonato 3 a 1 e 4 a 3 e no empate do primeiro turno jogamos sem o Renato, o craque do time.

Com quinze anos de idade, Ana Carolina se desmanchou após o empate de Fabinho. Golaço “daquele mala”, que mais tarde no Fluminense não conseguiu fazer nada parecido.

Sentada na arquibancada do Maracanã e com os olhos cheios de lágrimas não viu o gol da vitória e do título.

A torcida tensa estava quase toda de pé e minha filha só teve certeza da vitória quando a turma começou a gritar e pular que nem doidos.

Saímos do estádio eufóricos, entoando a cantiga que os rubro-negros tiveram que engolir. “O primeiro foi 3 a 1; o segundo 4 a 3; o terceiro 3 a 2 e essa p... virou freguês”.

Há que se registrar que as gozações entre as torcidas faziam parte da cena. Os perdedores ficavam chateados, às vezes xingavam, mas tudo sem violência. Não existiam marginais nos estádios. Era um país bem melhor.

À medida que foi crescendo, o interesse de Ana pelo futebol foi arrefecendo.

Continua torcedora, acompanha os resultados sem muita empolgação, talvez apenas em deferência a mim.

Melhor para ela que não sofre tanto com as pífias apresentações atuais de atletas sem a mínima condição de vestir a gloriosa camisa.

Quem sabe algum dia voltemos a ter um presidente como Manoel Schwartz.

Afinal, como está consagrado em nosso hino: “Quem espera sempre alcança. 


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Continua com "A Visita de Castilho"